terça-feira, 1 de junho de 2010

Contra o fanatismo 2



Geralmente o fanatismo é associado à religião. Sem dúvida, a religião consegue extrair o melhor e o pior das pessoas. Não por acaso o fanatismo é associado a ela. Porque o objeto de amor, de adoração, de prazer acaba tomando a atenção desmedida de uma pessoa, o fã, que cultua um “ídolo” como um deus, a ponto de adorá-lo e fazê-lo a razão da sua existência. As palavras “ídolo”, “fiel”, “culto”, “adoração” remontam ao universo religioso. Isso quer dizer que o futebol pode ser, para alguns, uma religião, assim como um trabalho, um hobby, uma pessoa ou uma celebridade pode ser objeto de culto.

Ao final do Campeonato Brasileiro de Futebol 2009 com a vitória do flamengo, uma cena me chamou a atenção enquanto os jogadores festejavam em campo sua conquista: um close de alguns torcedores satisfeitos, mas com um olhar perdido, instável e certo ar de perplexidade no rosto, como a dizer: Venceu, ótimo, mas e daí?

O que leva alguém a amar desmedidamente um time de futebol a ponto de estar disposto a viver o time, celebrar sua existência em bandeiras pregadas na parede do quarto ou sobre o carro em dia de jogos, visitar frequentemente o estádio, acompanhar o time em outras cidades, esperá-lo no aeroporto para festejar ou para criticar, chorar amargamente ao vê-lo perder e alegremente ao vê-lo ganhar, brigar com torcedores de outros times porque não compartilham daquela paixão avassaladora e, em alguns casos lamentáveis, matar por essa paixão?

Não há dúvida que o futebol é um esporte apaixonante. Não há dúvida que torcer pelo time da sua cidade ou pela seleção do seu país também é divertido. Torcer por um time é um lazer, um hobby saudável como qualquer outro. Ao vê-lo ganhar, alegra-se, faz-se troça com aquele amigo do time adversário; ao vê-lo perder, entristece-se, mas faz parte do jogo ganhar ou perder e a vida segue. Porém, nem todos veem assim. Esse tipo de “fair play”, espírito esportivo, não é uma dinâmica de todo torcedor. Em alguns, ali, bem no íntimo, existe o vírus da alienação, do fanatismo.

A exaltação exagerada a algo que nenhuma mudança prática lhe traz ao dia a dia nem valor efetivo em sua vida é preocupante. Seja seu time ganhando ou perdendo, sua conta bancária continua a mesma, seus problemas em casa nada mudaram, o salário continua não dando para as despesas, as contas continuam chegando, o aluguel acaba de aumentar... Mas ele está feliz que o time ganhou, vai fazer média com sua camisa oficial por aí e se sentirá alienantemente orgulhoso. Mas quando passar a euforia e tiver de enfrentar os obstáculos da vida, seus ídolos não estarão ali para driblar os problemas e fazer gols de barreira, é apenas ele com ele mesmo. “Ainda bem que domingo tem jogo no Castelão”, consola-se ele. Lá, as chances de ser vencedor são maiores.

Para esses as frustrações da vida são projetadas no time do coração, seu universo é pequeno, limitado e quando o time ganha, é ele quem ganha; quando perde, ele é o perdedor. Suas batalhas pessoais são transferidas para os jogadores, os ídolos em campo, que correm por ele, fazem gols por ele, vencem por ele, ficam ricos por ele, contudo não compartilham dessa riqueza com ele. Ao contrário, ele ainda paga, mensalmente com certa dificuldade, sua carterinha de sócio-torcedor para ajudar seu time. Para os jogadores, guerreiros de seu exército de chuteiras, tal torcedor é bem-vindo nas arquibancadas lotando os estádios, mas bem longe deles! Jogador quer distância de torcedor. Quanto mais longe dele melhor. Torcedor é para comprar ingresso, aplaudir e incentivar o time, mas que sua presença máxima seja separada pelas grades ou o fosso. Jogador não é besta.

Certa vez um jornalista esportivo disse que o torcedor perigoso era aquele que encarava o futebol como uma coisa séria. Com esse era bom ter cuidado. E tem razão. Quem tem que encarar o futebol como coisa séria é quem vive do futebol, quem recebe salário dele, quem depende dele para viver. Torcedor é para se divertir e ponto. Desde quando diversão é coisa séria? Ir ao cinema, ao teatro, a um show ou a um jogo de futebol é pura diversão e entretenimento para quem assiste, mas é sério para quem faz, produz e joga, porque vive daquilo. Mas não para nós que estamos apenas assistindo. Meu amigo Marton, aquele que me emprestou os DVDs da Segunda Guerra, é um apaixonado pelo Ceará, mas consegue ser um torcedor interessado e continuar inteligente, sempre de bom humor, fazendo troça com o cunhado que torce pelo Fortaleza, tudo na mais tranquila camaradagem, em provocação mútua. E não passa disso. Mas nem todos são assim.

Recentemente, um colega de trabalho, “Ceará saudável”, respondeu ele quando lhe perguntei se era “Ceará doente”, cuja mensagem de celular tem o grito do time, me fez uma grande grosseria quando lhe dei, em tom de brincadeira, os parabéns pelo vice-campeonato. Ele fechou a cara. Sentiu-se altamente ofendido, mas não se constrangeu em me ofender por causa de uma bobagem daquela. Curiosamente, aparentava ser uma pessoa risonha e bastante brincalhona, mas não mexa no seu time do coração!

Eu gostaria muito de estar de férias para acompanhar todos os jogos da Copa da África do Sul. Começa dentro de alguns dias. Não perderia nenhum jogo de nenhuma seleção, mas infelizmente terei folga apenas para ver os jogos do Brasil, como deve ser para quem está trabalhando, claro. Vou torcer pelo Brasil e ficar muito feliz se ele ganhar e triste se perder. Mas e daí? A vida é um jogo, ganha-se e perde-se. Seja ganhando ou perdendo a Copa, estarei religiosamente no dia seguinte de volta à minha rotina de trabalho: correndo com minhas próprias pernas, driblando com meu próprio talento, chutando fora com minhas próprias limitações e marcando gol no meu próprio labor pessoal, graças a Deus! Serei eu mesmo e não um outro por mim.

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